Hipermodernidades 22 - Património de Inutilidades
Quando a morte nos confronta e olhamos pausadamente para o nosso património de inutilidades, somos levados a pensar no grotesco esbanjamento de recursos a que nos sujeitámos por um imperioso desejo de posse que é abandonado pouco depois como um brinquedo por uma criança que cresce.
Ao longo de uma vida inteira armazenamos centenas de quilos de inutilidades.
A ideia de utensílio deixou-se sobrepor pelo desejo estético de uma moda a prazo de objectos supérfluos que foram alimentando uma falsa ideia de felicidade que, como todas as outras, seria efémera e desprezada ao pó das arrecadações. Fomos trocando a aquisição de conhecimento pela abjecção da aquisição compulsiva de ninharias.
O desejo perpétuo de obtenção de coisas, da busca interminável das ofertas promovidas e expostas por um comércio da invenção imponderada de «necessidades» que não servem para nada.
Trocámos o valor de horas de trabalho por lixo plástico ao sermos manipulados por um desenfreado capitalismo de consumo, desperdício de recursos, numa sociedade de urgências de bem-parecer no universo perverso de gostos comparados e comprados. Lixo. Dejectos. Esterco urbano. Poluição. Desperdício. Doença mental produzida nos hipermercados.
Há uma nova hierarquia de necessidades, uma estranha relação com a posse de objectos desnecessários, com o «gadget»: são toneladas de inutilidades ao fim de uma vida de aquisições. Contudo, cumpriram a missão para a qual foram criados: alimentação de desejos muito próximos do desejo infantil, consumo de objectos de desejo como se a civilização ocidental se revisse nesse anseio eterno de consumir.
Parece que tudo se alterou. A busca e o desejo de prazer substituíram a questão ideológica.
A legítima projecção de uma contínua melhoria das condições de vida surge na sequência de falsos facilitismos que vieram desencadear o descontrolo financeiro e a consequente miséria das populações, e a sua perda de liberdade, que acreditaram na boa-fé dos mecanismos das sociedades democráticas hipermodernas.
Ninguém contou com a fraude que, em lume brando, cozinhava o foco de destruição do legítimo desejo de melhoria de vida.
E o resultado está à vista.
Houve uma inflação de colarinhos brancos e gravatas berrantes que potenciaram o engano, a falsidade, a usura, a fraude, a vigarice, fosse contra quem fosse, fosse familiar próximo ou amigo.
A necessidade de alimentar a ambição desmedida tritura proximidades, afectos, cumplicidades, mas sustenta inevitavelmente a traição. Uma catástrofe.
O desastre consumava-se com o desvio de milhões de milhões em apostas subjectivas em produtos subjectivos que nada tinham a ver com a legítima produção de riqueza, mas tão-só com jogos virtuais como se os mercados fossem centros de lazer e distracção onde meninos brincavam com tecnologias sofisticadas com a morte de pessoas reais numa manifestação do mais hediondo desprezo pela condição humana.
A sociedade do hiperconsumo, da qual não é alheia a criação de datas fictícias comemorativas para o crescimento comercial do consumo desnecessário e caro de «gadgets», lançou as massas no mais pútrido lamaçal da miséria de valores a que chamam crise financeira.
Luís Filipe Sarmento, Gabinete de Curiosidades, Lisboa, São Paulo, 2017
Foto: José Lorvão
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