Tertúlia Portuguesa

✅A construção naval açoriana e os seus tipos de embarcações

Desde os primeiros tempos do povoamento das ilhas dos Açores que as necessidades de comunicação eram asseguradas por mar, não só entre as várias ilhas, mas também entre partes da mesma ilha, devido às barreiras naturais existentes e à ausência de caminhos.

A construção de embarcações era, por isso, uma necessidade vital para a sobrevivência das populações e para o exercício das suas actividades de transporte e de pesca, sobretudo nas ilhas de S. Miguel e Terceira, mas também nas outras ilhas do arquipélago.

Porém, a mais antiga referência à actividade da construção naval nos Açores encontra-se na obra de Gaspar Frutuoso que, em finais do século XVI, ao descrever a costa sul da ilha do Pico, se refere a uma baía chamada o Calhau do Galeão, “por fazer ali um grande galeão, chamado Trindade, um Garcia Gonçalves Madruga, o qual deu em pagamento a el-rei Dom João, terceiro do nome, por certas dívidas que lhe devia”.

No caso da ilha de S. Miguel, é conhecido um documento de Junho de 1636 que refere o “patacho per nome nossa senhora do Rosário e Santo António que se fez e comprou nesta ilha e foi para o Maranhão”, sendo também conhecido que a construção naval foi uma actividade que se desenvolveu especialmente na vila da Povoação.

No entanto, o conhecimento sobre este assunto ainda é muito limitado, embora seja sabido que a partir do primeiro quartel do século XIX e, em especial, na ilha do Pico, se desenvolveu a construção naval em madeira com base na experiência adquirida em estaleiros americanos por emigrantes picoenses, sobretudo naturais da freguesia de Santo Amaro, no concelho de São Roque do Pico.

O mestre João Maria Teixeira (1813-1879) que ficou “conhecido em todos os Açores como o primeiro construtor naval” esteve emigrado nos anos de 1840 e trabalhou como carpinteiro em estaleiros da costa leste dos Estados Unidos, regressando aos Açores com novos conhecimentos sobre a construção de embarcações. Na sua obra literária, Vitorino Nemésio referiu-se aos barcos então construídos na ilha do Pico.

O barco do Pico é um cavername aberto, nada elegante, de pouco mais de meio cento de toneladas, que arma duas velas latinas e singra de porto em porto e de canal em canal, carregando telha, leitões, cestos de fruta, chapéus de palha, e uma reduzida humanidade habituada à rebentação da costa e à vaga de através.

No entanto, o inspirador da moderna construção naval açoriana foi Manuel Inácio Nunes (1874-1947), natural de Santo Amaro do Pico. Tendo emigrado para os Estados Unidos em 1891, aí se lhe juntou cinco anos depois o seu irmão António e, em sociedade, fundaram os estaleiros Nunes Brother’s, em Sausalito, à entrada da baía de S. Francisco. A empresa dedicou-se à construção naval e teve um enorme sucesso nacional na construção de embarcações de diversos tipos. Numa reportagem sobre a sua actividade, publicada em 1946 no jornal Correio da Horta, é referido “como duas crianças, de Santo Amaro do Pico, que faziam barcos com o canivete, atiram para o mar centenas de embarcações, com altos prémios em corridas, preferidos pelos milionários para construtores dos seus hiates”.

Quando Manuel Inácio Nunes visitou Santo Amaro em 1914, teve a iniciativa de transformar o caíque Santo Amaro em iate e, com esse trabalho, inspirou alguns dos seus conterrâneos e impulsionou a construção e a reparação naval na sua terra natal. Após o seu regresso à Califórnia, continuou a apoiar os construtores de Santo Amaro, aos quais enviava os riscos de muitas embarcações para que eles as construíssem.

[Manuel Inácio Nunes] foi o mentor e impulsionador das construções navais de que Santo Amaro se orgulha de possuir. Quase todos esses barcos de linhas modernas, saídos do arsenal de Santo Amaro, e que sulcam os mares dos Açores, quer no transporte de carga e passageiros, quer na pesca da albacora, trazem a marca “Manuel Nunes”.

À reconstrução e modernização do iate Santo Amaro seguiu-se a construção de muitas outras embarcações que tornaram famosos os construtores santamarenses e os estaleiros de Santo Amaro, de onde saíram grande parte dos navios de cabotagem que navegaram entre as ilhas dos Açores, mas também muitos navios da frota atuneira e barcos de boca aberta, sobretudo os botes ou canoas baleeiras.

No historial da construção naval açoriana, alinham-se os nomes de muitos dos chamados iates do Pico que asseguraram a navegação de cabotagem entre as ilhas açorianas com passageiros e carga, designadamente o Patriota, o Helena, o Bom Jesus, o Livramento, o Santo Amaro, o Ribeirense, o Espírito Santo e o Terra Alta, entre muitos outros, mas também as lanchas do Canal que faziam a ligação entre as ilhas do Faial, Pico e S. Jorge, primeiro com lanchas de boca aberta e à vela e, mais tarde, com lanchas motorizadas como a Velas, a Calheta e a Espalamaca, entre outras.

Embora a construção naval açoriana tenha tido nos seus primórdios grande expressão nas ilhas de S. Miguel e Terceira, a partir do início do século XX com a construção de vias de comunicação terrestre, sobretudo em S. Miguel, houve um acentuado decréscimo na cabotagem costeira nessa ilha com a consequente quebra na construção naval.

Nessas circunstâncias, a construção naval veio a concentrar-se nos estaleiros de Santo Amaro, bem como em outros locais da ilha do Pico e, em menor grau em outras ilhas dos Açores, mas o facto é que durante mais de cem anos a freguesia de Santo Amaro foi o centro da construção naval açoriana, como consequência do dinamismo de muitos construtores santamarenses, incentivados a partir da Califórnia pelo já referido Manuel Inácio Nunes que, por sua vez tinha levado consigo conhecimentos de construção naval adquiridos do avô paterno e do pai.

Alguns destes construtores ficaram na memória da comunidade local por terem dado emprego a muita gente e por terem dado forma tanto a projectos próprios como a projectos de outros.

Tertúlia Portuguesa - De Portugal para o Mundo!