O escritor irrequieto - Pelos 200 anos de Camilo Castelo Branco (PT) por Pedro Chora Estadão

in Tertúlia Portuguesa2 months ago (edited)

Às cinco da tarde de Um de Julho de Mil Oitocentos e Noventa, de um tiro de revólver na cabeça, desferido às três e um quarto, faleceu Camilo Ferreira Botelho de Castelo Branco. Nascido sessenta e cinco anos antes, em Mil Oitocentos e Vinte e Cinco, morreu como viveu: pelo seu próprio punho. Como se completam agora duzentos anos sobre a data do nascimento deste, que foi o mais prolífico, influente e genial dos autores Românticos portugueses, mesmo não havendo nada mais a dizer, porque, sobre Camilo, já se disse de tudo, aqui vos deixo os meus cinco réis de conversa sobre um autor que, uma vez lido, não pode deixar de influenciar a forma, o estilo e o próprio vocabulário de qualquer um que se dedique à escrita, em língua Portuguesa, com a intenção de vir a ser lido por outros.

( Imagem: Retrato fotográfico de Castelo Branco
numa edição de Bohemia do Espírito, de 1886 )

A primeira vez que tenho consciência de ter tido contacto com a obra de Camilo de Castelo Branco, eu teria, talvez, uns dez ou onze anos, durante umas férias de Verão, naquele tempo em que duravam três meses e os meus pais me arrastavam com eles para uma pequena vila piscatória a Sul da Península de Setúbal que se chamava Sezimbra e à qual,os últimos quarenta anos tiraram o sabor daquele z na palavra, despromovendo a povoação a Sesimbra com s. Ao longo do mesmo tempo, o turismo de massas descaracterizou de forma quase absoluta aquilo que pouco mais era que uma pequena terra de pescadores com uma fábrica de gelo, meia dúzia de restaurantes, um quiosque de jornais e um cinema que funcionava à Sexta e ao Sábado, repetindo o mesmo filme durante um mês, transformando-a em algo que, apesar de nunca perder a beleza natural, perdeu a paz e a tranquilidade que reinavam nos dias da minha juventude.

Três meses sem nada para fazer a não ser ir à praia e obrigado a refugiar-me do Sol incandescente da tarde, pode parecer inimaginável nesta época em que até as férias são feitas a correr e tudo é interactivo. Parece, hoje, impensável não ter um facebook, um instagram, ou um tiktok para visitar quando estamos aborrecidos, mas, em verdade vos digo que não havia nada disto e, quando faltava a àgua, o que era debalde, tínhamos que ir, de balde, buscá-la à fonte que havia ao fundo da praia, ou não tirávamos a salmoura da pele e, para beber, havia que carregar os respectivos garrafões de àgua do Fastio, que às vezes, até esgotavam. Naturalmente, havendo que fazer algo do tédio dessas tardes e, nem sempre havendo amigos disponíveis para saltar à corda ou jogar às escondidas nas traseiras do prédio, a estante dos livros começava a despertar a atenção. Nesses dias, havia televisão a preto e branco, mas era só à noite, e, nas férias, havia, mas era no Café Central.

Tendo acabado de ler as obras completas de Agatha Christie, da Colecção Vampiro, que se compravam, ao Sábado, no tal quiosque, e não tendo ainda descoberto Erle Stanley Gardner, dei por mim de frente para uma parede de volumes encadernados a cabedal corado de verde com títulos dourados, gastos pelo uso e quase ilegíveis, dos quais, um deles, estreitinho, me chamou a atenção. Dizia na capa: A Queda de um Anjo, Camilo Castelo Branco. E foi, para mim, o princípio de uma paixão que durou os três Verões seguintes, em que passei a entremear os romances policiais com a leitura do Amor de Perdição, A Corja, A Brasileira de Prazins, O Assassino de Macário, O Judeu, O Retrato de Ricardina, O Livro Negro do Padre Dinis, entre tantas outras obras que me foram preenchendo as horas vazias daquelas férias, que, na época, eu achava inúteis e aborrecidas, por me afastarem dos amigos da escola, mas hoje, reconheço o quão formativas foram e que, tendo sido bem aproveitadas nos livros, me dispensaram, em anos posteriores, de maiores trabalhos nas leituras obrigatórias para a disciplina de Português. Nesses dias, eu era feliz, mas não sabia e, na celebração do bi-centenário do nascimento deste escritor, questiono o que seria eu, hoje, sem ter lido esses livros? Seguramente, pensaria o mundo de forma diferente da que o penso e, de certeza absoluta, não teria, neste momento, a mesma capacidade de escrever, com fluidez e em bom Português, este texto que vos apresento. Camilo Castelo Branco, foi, para mim, o primeiro exemplo da boa escrita na nossa língua. Devo-lhe, por isso, a mais rendida homenagem, gratidão póstuma e o respeito de não conspurcar a beleza da língua portuguesa com uma utilização mal construída, pouco pensada ou avacalhada por pressas ou pela aplicação de um iníquo Acordo Ortográfico que nada mais fez que empobrecer a nossa linguagem.

Bem sei que este texto era para ser sobre Camilo e que, dele, ainda não falei. Muitos outros já disseram tudo sobre o homem irrequieto, incapaz de se ater a relações estáveis ou comportamentos socialmente aceitáveis, crítico aberto de uma sociedade hipócrita na qual os vícios eram privados apesar das virtudes públicas. Um homem de fora do seu próprio tempo, que seguiu sempre o caminho dos seus impulsos e que, com isso, teve uma vida rica de experiências de todo o tipo, dos Palácios Reais aos calabouços da Cadeia da Relação do Porto, de convívios com monarcas e com os mais celerados criminosos. Um homem de quem Jacinto do Prado Coelho, analisando a sua literatura, disse ser "ideologicamente instável", talvez devido à amplitude dos temas, personagens, cenários e visões morais que apresentou nos seus inúmeros livros. A sua vida está na sua obra, irrequieta e diversa. Sobre Camilo e sobre o que escreveu, não me resta, para dizer, nada que não tenha já sido dito. Apenas, deixar aqui o meu reconhecimento da importância de um homem e de uma obra que não podem nem devem ser esquecidos e cujo conhecimento deve ser incentivado e incutido na mente de todos aqueles que queiram utilizar a língua portuguesa como instrumento de comunicação. Camilo Castelo Branco é fundamental!

por Pedro Chora Estadão

@hefestus 18.03.25