[#CríticaCCT] - IT: A Coisa. O diabo num palhaço e as flutuações do medo.
Sinopse: Um grupo de sete adolescentes de Derry, uma cidade no Maine, formam o auto-intitulado “Losers Club” – o clube dos perdedores. A pacata rotina da cidade é abalada quando crianças começam a desaparecer sem deixar quaisquer rastros. Logo que coisas horripilantes começam a acontecer com o grupo de amigos, eles notam a presença de uma figura em comum: o palhaço Pennywise.
Antes de tudo, um adiantamento: nunca li a obra de Stephen King. Não por falta de vontade, é claro, mas porque, além de muitos afazeres e leituras mais prioritárias, as proporções de A Coisa sempre me assustaram. São 1104 páginas, bicho… Deve ser mesmo uma obra e tanto. Mas, vai, né, é uma história que narra os horrores vivenciados por sete pessoas distintas em períodos diferentes de suas vidas; precisava mesmo disso tudo, eu acho. Sei de algumas coisas aqui e outras ali, mas nada realmente conciso sobre o livro. Portanto, não busquem aqui por um comparativo detalhado entre as obras – nem tanto deste filme com a minissérie dos anos 90, embora eu pincele algo no decorrer do texto.
A Coisa realizada aqui por Andy Muschietti, 27 anos após a última adaptação do livro – o exato espaço de tempo com que Pennywise ressurge de seu descanso –, merece um espaço só seu. É, e sem medo de ser, um baita filme!
Muschietti, ao ceticismo de quem não viu grandes coisas em seu longa-metragem debutante, Mama (2013), dá um triplo mortal carpado, de lá até aqui, e acerta em cheio na realização de It: A Coisa – aproveitando a deixa pra dar uns muito bem dados tapas na cara das produções de Terror atuais que acham que as convenções do gênero se resumem a jump scares brotoejantes. É uma produção de Horror que, sem medo de ser aquele tipo de Terror que todo mundo gosta, se usa exatamente de suas convenções para construir uma obra que talvez seja seminal ao gênero nos dias de hoje. Há quem comemore o feito, mas não sem razão. De maneira alguma, sem razão.
Georgie, um mini-cidadão cheio de energia, pega seu barquinho de papel, vai pra chuva e põe seu destemido veleiro para navegar nas torrenciosas águas dum córrego próximo de sua casa. Mas a água é mais rápida do que ele, ele corre, pula, e, desatento, bate a cabeça num cavalete, e o barquinho toma distância. Ele levanta meio zonzo, mas já era tarde: seu barquinho havia descido o córrego e caído dentro do esgoto. Quem disser que nunca brincou com um barquinho assim, ou mente descaradamente, ou não teve uma infância tão boa. Mas a diferença entre nós e o pequeno Georgie, é que nós, num desses nossos banhos de chuva, nunca demos de cara com um palhaço dentro de um esgoto. Seria estranho, não é mesmo? Talvez… Não fosse o fato de que Georgie teve a infelicidade de se encontrar com Pennywise. E nisso, lá foi se foi mais uma vítima…
O novo longa de uma das, potencialmente, mais bizarras figuras da Cultura Pop, o Palhaço Dançarino Pennywise, acompanha a jornada de um grupo de amigos, denominados Losers, em busca de investigar o mistério envolvendo tanto o desaparecimento do irmão de um de seus membros (lembram do Georgie?), quanto os periódicos casos de desaparecimentos em massa no decorrer da história da pequena cidade de Derry. Dessa vez se passando nos anos 80 – e não nos 50 como no livro¹ –, os seis adolescentes são, um a um, assombrados por Pennywise, que se usa das vulnerabilidades mais excruciantes de cada um deles para lhes infligir medo, até enfim notarem o denominador comum de tudo.
E que denominador! Bill Skarsgård está muito bem no papel. Ele consegue captar a alma de Pennywise sem necessariamente seguir o mesmo rumo que seguiu Tim Curry em 1990. Sobre a escalação de Skarsgård, os produtores contam como foi pensar na figura do palhaço sendo desempenhada pelo ator: “Acho que a coisa que todos nós sabíamos, incluindo Bill e Andy era que ‘olhe, nós temos de respeitar e honrar o desempenho Tim Curry, mas não podemos fazer aquilo. Aquilo é icônico, você não vai superar aquela versão de IT’.”, conta Seth Grahame-Smith em entrevista. E o diretor complementa: “Eu queria permanecer fiel à essência do personagem […] Eu sabia que não queria seguir o mesmo rumo de Tim Curry. Bill Skarsgard chamou minha atenção. O personagem tem um comportamento infantil e doce, mas há algo muito estranho sobre ele. E Bill possui esse equilíbrio nele. Ele pode ser doce e fofo, mas pode ser bastante perturbador”. Outra coisa interessante sobre Skarsgard no papel de Pennywise é que os produtores resolveram mantê-lo fora da visão das crianças do elenco até o momento em que elas precisassem filmar com ele, e o retiravam de cena assim que as câmeras paravam de rodar. “[Eles, os produtores] tentaram manter distância entre ele e as crianças. […] Queríamos levar o impacto dos encontros para quando as câmeras estavam rolando. Na primeira cena onde Bill interagiu com as crianças, foi divertido ver como o plano funcionou. As crianças estavam realmente, realmente assustadas com Bill.”
Sem anjinhos imaculados, o texto do filme apresenta uma visão talvez pouco comum sobre a infância. Há xingamentos a torto e a direito, há menções sexuais a mãe dos coleguinhas, há tripudiações de toda estirpe imaginável. Enfim: há crianças e adolescentes sendo exatamente aquilo que nós vivenciamos longe da supervisão de nossos pais, coisa pouco vista no cinema quando determinadas produções se incubem de criar figuras infantis. E esse aspecto é muito interessante para o filme, além de ser funcional. Interessante porque se desloca do lugar-comum, e passivo, da infância, e funcional à trama porque essas características são fundamentais à dinamicidade do filme, além de que delas emanam muitos de seus alívios cômicos. Outra característica muito importante para o filme se dá na não criação de personagens unidimensionais, furtados de elementos emocionais consistentes, o que garante que o tom do filme não fuja muito do tangível. Tudo isso garante um texto muito ágil e convidativo, embora verse com imponência sobre assuntos bastante obscuros.
O roteiro do filme, escrito por Chase Palmer, Gary Dauberman e Cary Fukunaga (True Detective, 2014 e Beasts of No Nation, 2015) – este último que, por diferenças criativas, pulou fora da produção e deixou todo mundo com medo de que o filme fosse se tornar um lixo –, tem uma jornada interessante desde sua concepção inicial até o material final. Basicamente, do primeiro script do filme, de Fukunaga com Palmer, Muschietti, sua irmã e Dauberman só aproveitaram dois aspectos fundamentais: a estrutura temporal de dois filmes e o desenho de personagens. De resto, boa parte foi modificada. “Era um bom roteiro, em termos de profundidade de personagens, e tal, mas ele não tocava num dos traços mais atraentes do personagem [Pennywise], que eram as suas qualidades de mudança de forma”, conta Muschietti, para o Collider, sobre sua visão de um Pennywise, em parte, mais voltado à metamorfose. E Barbara Muschietti, irmã do diretor e produtora do filme, complementa: “O que herdamos foi, basicamente, a estrutura de dois filmes […] Eu acho que o que nós levamos à mesa foi o [estilo] de Andy e como ele encara o medo, de como ele precisava ter personagens muito emocionais, e foi muito fácil com esse material de raiz. Eu acho que esses dois aspectos, emoções e medo, foram impressos no roteiro que foi desenvolvido conosco com Gary Dauberman.”
A direção de Andy Muschietti, dinâmica e com uma ótima noção de timing, eleva o já bom texto do filme a outro patamar. É uma direção inspirada e que não sugere medo algum de se assumir enquanto um Terror usual, já que explora muito bem as convenções do gênero, aproveitando pra tomar inspirações de obras consagradas do cinema oitentista, como A Hora do Pesadelo e Conta Comigo (outro longa baseado numa obra de Stephen King). Há aqui um ótimo trabalho de decupagem que, em momentos específicos da trama, se preocupa em transferir o roteiro para a tela sempre se beneficiando duma gama de possibilidades, e há escolhas muito boas nesse sentido. Um aspecto curioso da condução de Muschietti é o seu uso constante de Planos Holandeses, sempre prenunciando algum tipo de instabilidade, que, na maioria dos casos, se revelam no contato direto com Pennywise e suas assombrações. Uso-me de dois momentos muito bons do filme que revelam a perícia de Muschietti quando incumbido da tarefa de criar suas cenas. Uma delas se encontra em parte da sequência de Ben na Biblioteca da cidade, que guarda em sua profundidade de campo uma particularidade que talvez tenha escapado do olhar do espectador.² Outro exemplo é a incrível cena da Bevvie no banheiro de sua casa, que em muito lembra a antológica cena de A Hora do Pesadelo (1984).
E justamente desta perícia de Muschietti parte o alinhamento entre filme e personagem-título. O filme, sob certa perspectiva, é como se fosse uma exata representação de seu antagonista. Pennywise precisa de medo para ser quem é, e o enredo do filme é perfeitamente obediente a este aspecto fundamental de Pennywise: se desenvolve inteiramente pautado em evocar medo. Pennywise incide-se sobre os personagens, e o filme, sobre nós, espectadores. Basicamente, o filme cresce junto com a figura demoníaca que lhe configura. E há nessa dinâmica entre pavor e efetividade algo precioso para o cinema de Horror contemporâneo: o fato de que a intenção aqui nunca foi o espanto pura e simplesmente, que se preenche com bobagens caricatas. Em IT: A Coisa o medo se comporta como sinônimo de muitos elementos, mas principalmente de sentido e profundidade. Se há jump scares nesta produção? Sem dúvidas! Mas eles nunca são gratuitos. Felizmente.
A fotografia ficou por conta do sul coreano Chung Chung-hoon, que costuma trabalhar com Park Chan-wook (Oldboy, 2003; A Criada, 2016). A foto de Chung não traz consigo grandes firulas estéticas, mas consegue compor imagens muito bonitas, ora usando tons vivos, ressaltando a juventude e vivacidade tanto de seus personagens quanto da própria época, ora com tons mais neutros e frios, como o verde, quando em ambientes fechados, de luz mais rarefeita, costumeiramente tensos. É, no grosso, um trabalho pra lá de competente, e bonito, sim, mas sem grandes apelos. E o mesmo pode ser dito da trilha sonora de Benjamin Wallfisch, que é bastante eficiente em encorpar o tom do filme em seus momentos-chave, mesmo que não engate nenhuma trilha memorável – e não que ele precisasse, obviamente.
Mas se engana quem acha que IT está isento de máculas. Há um erro bobo de continuidade ali pelos idos do terceiro ato, por exemplo, mas não se trata disso. Há alguns problemas mais expressivos no filme que infelizmente não flutuaram dele: o primeiro deles, diz respeito a reação comedida demais para um grupo de crianças após a horripilante sequência da garagem, que se conclui com rompantes de coragem e razoabilidade, quando deveria ser o extremo oposto. Não consegui engolir.³ Em segundo lugar, o subaproveitamento de alguns personagens do grupo, como Mike, que é provavelmente o que mais possui background entre todos. Ele até tem momentos eficientes, mas bem magros no filme. E, por último, já ali pelas vias de conclusão, o único erro realmente flagrante do filme: a manobra barata e extremamente Bela Adormecida optada pelo filme, protagonizada por Ben e Beverly. De todas as escolhas disponíveis, a pior foi aquela. São coisas até desimportantes, já que não comprometem a narrativa do filme, mas patentes, porque enfraquecem a trama se concebidos como potencialidades inexploradas.
Se a minissérie noventista – e consequentemente seu filme, mais enxuto –, intitulada Obra Prima do Medo aqui no Brasil, não conseguiu em seu saldo final ser realmente aquilo que o pomposo subtítulo brasileiro lhe empregou, o longa de Muschietti, ainda que talvez não o seja integralmente, pode facilmente se sentir mais livre para tomar a alcunha para si. É uma ótima realização, e ficamos aqui na torcida para que o próximo filme seja, pelo menos, tão bom quanto esse.
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[1]: No livro, os acontecimentos com as crianças se passam em 1958. Já esse novo filme se passa em 1989. Curiosidade: numa pequena passagem do filme, é exibida parte da faixada de um cinema, que estava a exibir o filme "A Nightmare on Elm Street 5: The Dream Child", que foi lançado no ano de 1989.
[2]:SPOILER
: Nessa cena, Ben, enquadrado num plano médio, recebe da senhora bibliotecária um livro-arquivo onde constam os casos de desaparecimento da história de Derry. Mas notem uma coisa: após entregar o livro para Ben, a senhora se desloca para o fundo do quadro, atrás das mesas. E, na medida em que Ben folheia o livro e nota os misteriosos casos, a senhora que lhe entregou o livro, lá de trás, se volta para ele e, gradativamente assumindo uma postura envergada, passa a sorrir sinuosa e macabramente, denotando a aterradora presença de Pennywise antes mesmo de Ben ser diretamente assombrado por ele.
Segue um frame da cena para facilitar.
A cena talvez escape porque se usa de profundidade de campo, ou seja, do desfoque dele para mascarar o comportamento em questão. Certamente, se Muschietti optasse por usar um deep focus na cena, ela seria assimilada com mais facilidade, mas correria o risco de perder seu caráter atmosférico, sensorial.
[3]: Eu mesmo, ali no lugar deles, já estaria todo borrado e provavelmente atacando alguma espécie de epilepsia evocada pelo momento, no chão. E facilmente chorando copiosamente quando acordasse do surto. Mas, brincadeiras a parte, eu sei que é sempre complicado traçar esses paralelos entre o comportamento de diferentes pessoas, principalmente em diferentes faixas etárias, mas não deixou de me soar inconsistente que um grupo de crianças reagisse daquela maneira.
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Esse texto foi publicado originalmente no site CINECOMTEXTO.
Por Ericson Miguel.
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Bom dia,
Uma dica é meter um link (que nos leve á sua página do Steemit) no site do artigo. Assim fica verificado que o texto é seu, e irá ter mais upvotes.
Opa, muito obrigado pela dica, @maxjoy! Irei fazer isso agora mesmo!
Forte abraço.
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